Abrimos este importante ciclo de podcasts com uma conversa com o convidado Henrique Rochelle, sobre Obras e Trajetórias de Henrique Rodovalho e Cassi Abranches, dois artistas exponencias na cena da Dança da atualidade. O ciclo “Possibilidades de carreiras na Dança” - – especialmente para os que estão na Formação em Dança – aborda através de nossos profissionais consagrados, as tão variadas e múltiplas possibilidades de estudo e carreira na Dança. Este é só o episódio 1 e já tão repleto de motivações! Boa aula para vocês!

Dois momentos e uma perspectiva da Quasar Cia de Dança

ROCHELLE, Henrique. Dois momentos e uma perspectiva da Quasar Cia de Dança. Campinas: Unicamp. Unicamp; Mestrado em Artes da Cena; Orientadora: Cássia Navas Alves de Castro. Fapesp; Mestrado.

 

RESUMO

Prestes a completar 25 anos, a Quasar Cia de Dança se mostra proeminente no cenário da dança brasileira pelo trabalho de seu coreógrafo residente e fundador, Henrique Rodovalho. Partindo do contraste de entrevistas com análises históricas e de espetáculos, identificam-se dois momentos distintos dessa companhia: sua formação, com destaque para o trabalho cênico e estruturado no humor; e sua consolidação, com um trabalho de movimentação segmentada característico de seu criador. A colocação desse aniversário como um momento de redeterminação dos objetivos da companhia, a partir do desejo de diversificar seu público através de um pluralizar de sua estrutura comunicativa pode, assim, ser tratada a partir do apontamento e estudo dos caminhos histórico-estéticos percorridos para o desenvolvimento e continuidade dessa característica de individuação artística, valorizada na Quasar desde seus fundadores e mantida no cerne de sua produção.

 

Palavras-Chave: História da Dança : Dança brasileira : Quasar Cia de Dança.

 

Ao sugerir que “quando a gente começa a falar do futuro é porque o presente já passou ou está passando muito rápido”, Rodovalho (2012, Formação) aponta para uma preocupação sua com a continuidade do trabalho da Quasar, companhia que fundou junto com Vera Bicalho em 1988 em Goiânia e que dirige como coreógrafo residente até hoje.

Seu trabalho com a Quasar passou ao longo desses quase 25 anos por diversas alterações, notáveis especificamente numa divisão principal entre as obras iniciais (1988 – 1997), e uma segunda fase (1998 – 2010), além de sugerirem o atual encaminhamento para um terceiro momento. 

Quando a companhia iniciou seu trabalho, as coreografias produzidas tinham um enfoque direto no trabalho com o cômico de situação ou de personagens, desenvolvendo cenas humorísticas que, a partir de seus momentos e relações internas, tinham o efeito de riso, funcionando como estratégia de construção, além de estratégia de aproximação do público. Levado à dança com pouca experiência técnica, Rodovalho aproveitou o conforto da cena cômica para desenvolver um estilo que foi bem recebido, ao mesmo tempo em que permitiu à companhia, ainda sem respaldo financeiro/ administrativo, se desenvolver conforme as disponibilidades de seus membros.

Durante esta fase, a partir de uma proposta de projeção da companhia para fora de Goiânia, que aparece pela primeira vez com a obra Versus (1994), a Quasar foi levada ao Internationales Summer Theater Festival (Alemanha) e ao Susanne Dellal Dance Festival (Israel), criando um primeiro reconhecimento internacional de seu trabalho. Dedicado ainda à construção cômica em cenas, o trabalho foi percebido como um “pequeno circo de vinhetas astutas e inteligentes, que passam rapidamente de uma a outra” (DUNNING, 1999). A construção então evidenciada é a de esquetes de humor, com foco na criação de uma personagem colocada, quando em confronto com as demais ou com o próprio público, em uma situação risível. De organização simples, as esquetes são facilmente palatáveis, e o público as compreende fluentemente, o que reforça o caminho direto da comunicação dos conteúdos do coreógrafo à plateia – conteúdos estes que tratavam sobretudo do cotidiano e de situações de associação imediata.

Apenas a partir desse momento e com essa projeção a Companhia pode criar um aparelho administrativo e financeiro que permitiu a dedicação maior de seus membros ao trabalho da Quasar. Rodovalho (2011) comenta que os trechos mais cênicos dos espetáculos eram montados numa estratégia de “coreografias conversadas”, havendo uma preparação e acordo oral sobre aquilo que seria feito, sobrando assim mais tempo

para os ensaios das cenas com maior carga coreográfica, que demandavam mais trabalho por parte da trupe.

A partir da turnê europeia de 1996 (cujo financiamento foi parte da premiação do festival alemão), e dos materiais com os quais a companhia entrou em contato durante as viagens, o coreógrafo desenvolve seu espetáculo seguinte, Registro (1997) (RODOVALHO, 2012, Tendências). Recebido no Brasil com cinco prêmios mambembe

(nas categorias grupo, espetáculo, coreógrafo, bailarino revelação e bailarina revelação) antes mesmo de sua estréia em São Paulo, com Registro a companhia foi colocada em posição de destaque no território nacional, abrindo caminhos, por exemplo, como o patrocínio da Brasil Telecom no ano seguinte.

Em 1998, com o espetáculo Divíduo, o trabalho de Rodovalho inicia o que pode ser identificado como uma segunda fase na trajetória da Quasar. Antes pautada no jogo rápido das cenas cômicas, a coreografia agora adquire uma característica de maior trabalho estético, com a criação de uma movimentação específica, característica até hoje do coreógrafo. A segmentação do movimento no corpo é tratada por Rodovalho sintaticamente: cada parte do corpo, cada trecho do movimento, se articula como uma palavra numa frase. As palavras não podem ser apresentadas simultaneamente: para que a frase se realize comunicativamente, é necessário que uma palavra venha na sequência da outra (RODOVALHO, 2012, Formação), desencadeando um processo que tem na segmentação do movimento um núcleo comunicativo.

Esta “extrema sofisticação do gesto” (JAQUIÉRY, 2004), particularidade da movimentação proposta por Rodovalho, é o que domina a segunda fase da Quasar. Não

há um abandono do humor, ou mesmo do material cotidiano, mas em Divíduo pela primeira vez nota-se essa clivagem entre o mundo comum e o mundo especializado, que o coreógrafo coloca em termos de o “real” e o “da dança” (apud KATZ, 1999), declarando sua compreensão da diferente comunicação entre o público geral e o público

especializado. Durante esta fase da Companhia, o investimento e a recepção positiva dessa característica particular, autoral, do criador, gerou obras cada vez mais elaboradas coreograficamente, ao mesmo tempo em que tratavam de materiais que fossem mais facilmente aproximáveis (do que o estilo coreográfico rebuscado).

Coreografia Para Ouvir (1999), por exemplo, trabalha com uma ambientação sonora urbana; Só Tinha de Ser Com Você (2005) propõe coreografias para o álbum de Elis Regina cantando canções de Tom Jobim; e mesmo Divíduo faz um grande uso da tecnologia, da simultaneidade, para enfatizar as relações construídas entre artistas e público. Os temas de Rodovalho também circundam frequentemente esse universo cotidiano, o desejo, a distância, as relações humanas, propondo, mesmo com o uso de

diversas referências de movimento para a composição de sua própria linguagem coreográfica (ANDERSON, 2002), formas de abertura para o contato e a compreensão do público.

Esta apreciada característica de movimentação da Quasar é o que impera nessa segunda fase da companhia, chegando às obras mais recentes, como Céu na Boca (2009) e Tão Próximo (2010), já como um estilo facilmente reconhecível do criador. O uso do humor como estratégia de aproximação persiste, porém mais diluído. Enquanto o humor da primeira fase é criado pelas situações das personagens cômicas, nestas obras da segunda fase, as cenas de humor aparecem como pequenas alterações no clima da obra – interstícios, diferenciações, que trabalham não apenas a favor da alteração de ritmo dos espetáculos, mas também na variabilidade de conteúdos que podem ser comunicados dentro do universo de significados que cada obra se propõe a tratar.

Dessa forma, há uma relação direta e recíproca entre a fragmentação do movimento e a fragmentação dos espetáculos, que a Quasar frequentemente apresenta em pequenos núcleos cênicos, conjuntos coreográficos e trechos, que se relacionam, se sobrepõem, se continuam, conforme as propostas dramatúrgicas de cada obra, mas que são possíveis de se tomar independentemente. A criação segmentária oferece aos

espectadores “fragmentos ou impressões, mais que uma figura completa” (MAURO, 2006). Ficam nas obras diversos espaços para o público completar com suas informações, evitando-se assim o efeito hermético que uma obra fechada em sua movimentação singular poderia causar.

A especialização do movimento, a característica particular da companhia desenvolvida durante sua segunda fase, é o que tem incomodado Rodovalho. Conforme a Quasar se aprofundou nessa característica tão valorizada pelo que ele chama de o mundo “da dança”, houve um pouco de distanciamento daquele outro mundo, que seria o “real”. É nesse momento de questionamento que a 23ª criação da Quasar, no Singular (2012), se insere. A proposta é “sair um pouco dessa coisa quase inatingível que está se tornando a dança, muito conceitual, e ir ao encontro do público” (RODOVALHO, apud MENEZES, 2012). A obra criada é comparável em diversos níveis a Divíduo, não apenas pela manutenção das discussões do ser individual versus a vida coletiva, mas também por diversos procedimentos estéticos das obras, além da possível referencialidade historiográfica, que é o que empresta a possibilidade de colocar no Singular como um espetáculo de transição, uma perspectiva de um novo momento da produção da companhia goiana.

No Singular desenvolve a ideia das relações em rede a extremos conceituais, propondo empréstimos de outros espetáculos da companhia; repetição de coreografias durante o espetáculo; cenas faladas; cantadas; bailarinos convidados (a cada nova cidade em que a companhia se apresenta) para inserirem no espetáculo a singularidade de suas formas de dançar, em confronto com a singularidade da Quasar; além de ser um trabalho em que o coreógrafo abriu para os bailarinos o espaço de desenvolver a movimentação, numa criação mais coletiva que individual, porém ainda dirigida e assinada por ele. O questionamento de Divíduo, “o que você faz quando está sozinho?”, aqui se transforma

em “o que fazemos com a nossa individualidade estando todos conectados?”

A discussão do público e do particular sempre esteve no cerne das coreografias da Quasar. Um dos principais agentes de humor, aproveitado por diversas cenas da primeira fase da companhia, é o contraste entre a particularidade/ a individualidade, e o

comportamento coletivo esperado. Dentro de suas propostas, a Quasar articula, sem estagnação, os seus conteúdos diversos. Autoral, individual, mas em mudança, em movimento. Os momentos da companhia não se opõem (no sentido de que não se negam), mas se articulam, se discutem, e assim discutem os caminhos pelos quais a companhia passou, desde sua criação tão particular no centro-oeste, até sua consolidação no exterior e nas demais regiões do Brasil; seu desenvolvimento de uma característica autoral; e a perspectiva de uma mudança, intencional, programada por seus realizadores, que já se mostra em curso na produção artística mais recente.

 

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Jack. Stretching Their Way to Revelry and Rivalry. The New York Times;

New York, oct. 4, 2002.

DUNNING, Jennifer. Shades of Chaplin in Witty Vignettes. The New York Times. New

York, oct. 19, 1999.

JAQUIÉRY, Corinne. Flamboyant Brésil: Au Pré des druids, qualité et intensité du propos

chorégraphique culminent avec Quasar. 24 Heures. Lyon, 5 juil., 2004.

KATZ, Helena. A Dança Autoral de Goiás. O Estado de São Paulo. São Paulo, 22 mar.

1999.

MAURO, Lucia. Rodovalho’s ‘Choreography for Listening’ pulls music from his dancers’

bodies. The Chicago Tribune. Chicago, feb 25, 2006.

MENEZES, Maria Eugênia. Espetáculo questiona limites da arte e ensina público a

dançar. O Estado de São Paulo. São Paulo, 10 out, 2012.

NAVAS, Cássia. Seis Criadores Brasileiros. 190p.Tese (Pós-Douturado). USP, São

Paulo, 2001.

RODOVALHO, Henrique. Formação e Desenvolvimento da Quasar Cia de Dança. 2012.

Entrevista pública concedida a Cássia Navas, Encontros Notáveis, Série II. São Paulo, 13 e 14 abr, 2012.

RODOVALHO, Henrique. O Humor na Quasar. 2011. Entrevista pública concedida a

Cássia Navas, Encontros Notáveis, Série I. Piracicaba, 19 nov, 2011.

RODOVALHO, Henrique. Tendências coreográficas na composição para a Quasar. 2012.

Entrevista concedida a Henrique Rochelle. São Paulo, 1 jul, 2012.

Mulheres que não se calam

FONTE: https://www.daquartaparede.com/post/quasar-silencio

 

Por Henrique Rochelle, em outubro/2012

 

Mulheres que não se calam

Em “ Estou Sem Silêncio”, as novas mulheres da Quasar tomam a voz, para enfrentar medo e ameaças.

 

Numa companhia historicamente guiada por grandes bailarinas, repetir a fórmula de um elenco todo feminino, como acontece em “Estou Sem Silêncio”, é um espaço de reconhecer o lugar da mulher, e de uma forma bastante positiva: dando voz a elas.

O efeito de um diálogo com a história é incentivado pela primeira cena do trabalho, que recupera uma referência a “Céu na Boca”, de 2007. Aqui, já vemos um traço da escrita do coreógrafo Henrique Rodovalho, que tem um gosto franco pelo cômico e pelo uso do humor em cena. Mas em “Estou em Silêncio”, sempre que uma construção esbarra no humor ou na leveza, ela é brutalmente trazida para uma realidade mais dura e pesada.


É um ataque, sofrido pelas bailarinas, numa cena ao som de piano que se repete ao longo do trabalho. Nela, vemos corpos que são batidos por um outro que não entra no palco, só representado por uma luz, angulosa, na direção das bailarinas, que reagem, em corpos violentados, e que buscam as formas de se expressar.

O sentido do todo parece ser claro: a vida acontece apesar desse tipo de situação, e seu terror não muda a profundidade dessa existência multifacetada, do mesmo jeito que essas outras facetas não apagam seu assombro.

 

Se na estreia em São Paulo, no ano passado, a gente observava a obra notando o estado em processo da assimilação da forma de movimento da Quasar, a esse ponto ela não parece mais um objetivo. Ainda estão em cena a segmentação do corpo, a decomposição do movimento, as curvas e quebras inesperadas, o trabalho no espaço negativo do corpo do outro, o tempo do gesto se construir em cena. Mas as tônicas aqui estão longe de ser a movimentação pura.


Esse elenco toma voz, e o conjunto não se faz homogêneo. A individualidade é aproveitada para Desarticular a coreografia, e o aspecto contra o uníssono, que foge do síncrono, acaba reforçando uma partitura de movimento diretamente afetada por cada uma das intérpretes.

Esse reforço do lugar das intérpretes como sujeito aparece em diversos níveis. É ele que é responsável, por exemplo, pela evolução das cenas da ameaça. Na terceira vez em que ela chega, as bailarinas já não fogem mais da luz. De mãos dadas elas se fazem apoio e contrapeso, e avançam em sua direção, enfrentando a ameaça.


Essas cenas ficaram especialmente boas para serem vistas na filmagem, transmitida ao vivo pelo CCBB, do palco em Brasília. Movendo pelo espaço, a câmera aciona outros ângulos, que alongam as luzes e dão ênfase a certas colocações do corpo no palco, que não veríamos ao vivo, de só uma posição na plateia. 

Quando avançamos para o final, e chega a última das cenas de ameaça, não há mais medo, e com um corte brusco as bailarinas passam a uma caminhada para o fundo do palco, despindo-se de uma última camada de figurino, que deixam pra trás, quase sem olhar, no que provavelmente é o maior tom positivo do trabalho.


Reconstruindo suas próprias referências, essas mulheres não se calam. E falam por si, para chamar a atenção pra tantas outras histórias, às vezes disfarçadas entre tudo o mais que existe na vida. Um futuro feminino, que espelha, em pontos distintos, mas interligados, o passado da Quasar, também notável em sua feminilidade. 

“Estou Sem Silêncio”, Quasar Cia. de Dança

Elenco: Gabriela Leite, Jackeline Leal, Marcella Landeiro e Thais Kuwae

Coreografia e desenho de luz: Henrique Rodovalho

Figurino: Cássio Brasil e Vera Bicalho

Trilha sonora: coletânea

Produção: Vera Bicalho e Giselle Carvalho

Operação de luz: Sérgio Galvão

Direção Artística da Cia: Henrique Rodovalho

Direção Geral da Cia: Vera Bicalho

 

O que precisamos e queremos guardar – Por Henrique Rochelle – out 2018

Por Henrique Rochelle – em outubro/2018

 

O que precisamos e queremos guardar

Feliz e inesperado, o retorno da Quasar aos palcos com ‘O Que Ainda Guardo’ refaz trajetória de Henrique Rodovalho e insiste na importância dessa companhia.

* escrito para o Criticatividade

 

O retorno da Quasar aos palcos, depois de longa pausa, é um misto de felicidade e preocupação. Preocupação com a nossa arte e os nossos artistas — quando deixamos uma companhia desse gabarito e desse repertório e expressividade parada, por diversas situações. Felicidade porque eles são feitos de matérias mais dura, insistem, continuam, abrem caminhos, descobrem novas formas de continuar fazendo aquilo que fazem de melhor.

As parcerias, já no ano passado apontadas como uma grande tendência do momento da nossa dança, este ano estão ainda mais fortes, e é em uma dessas que, com o apoio do Preciosidades Vivara, a Quasar pode voltar à cena, com “O Que Ainda Guardo”. Da poesia do título, a reflexão e a expectativa inevitáveis, sobre tudo aquilo que sabemos do trabalho de Henrique Rodovalho, coreógrafo da companhia, e Vera Bicalho, sua diretora.

 

Do apoio da joalheria vem o tema, a Bossa Nova, que não é estranho ao universo da Quasar: foi trilha de “Só Tinha de Ser Com Você” de 2005, que guarda outras semelhanças além da música com esse novo espetáculo, que mistura delicadamente várias referências passadas, com novas propostas e linhas, novas estruturas e formações coreográficas.

 

A impressão geral, é a de que olhamos para uma coleção — de jóias, para emprestar do universo. Algumas relíquias de família, algumas carinhosamente acumuladas com o tempo, outras tantas novas adições, num todo que é único, específico, pessoal, distinto. Rodovalho, que também assina a luz, como de costume, tem suas marcas visuais. Dinâmico e por vezes ríspido, no movimento e também na iluminação, vai alternando o difuso e o focal — ora nos dissolvemos no todo, ora nos concentramos no detalhe. A proposta é ajudada pelo figurino e pelo cenário, metamórficos, que adicionam dimensão e ilustram um conceito, transportam a esse lugar que tem uma referência clara nessa música, mas também tem uma referência nas joias, na preciosidade, e, maior que todas, uma referência na Quasar.

 

À leveza que impõe a Bossa se contrapõe o peso característico das relações, como Rodovalho habitualmente as encena. Sua expressividade, pautada pela rearticulação do corpo e destaque de suas partes é capaz de dominar o lento, de forma que seu tempo e suas sensações em cena têm um uso que não é o do cotidiano.

Como, então, fazer propostas tão pensativas se relacionarem com o público, sem criar a barreira que vemos em muita dança contemporânea, e que nunca foi problema para a Quasar? Com genialidade. Com a sutileza do cômico que é própria do criador, com a exploração do cotidiano, do lugar-comum, do ordinário — elementos também fundamentais para a Bossa Nova, e sua temática inteiramente anti-épica e empática.


Assistir ao trabalho de Rodovalho é sempre uma aventura. Não porque ele nos conte os grandes feitos de grandes heróis, mas pela capacidade de desvelar a mística por trás do dia-a-dia. Seu olhar vê o mundo e nos devolve o mundo, em toda sua grandeza e, ao mesmo tempo, simplicidade. Tudo parece uma grande brincadeira séria, um daqueles instantes de risada compartilhada e de percepções de beleza nos lugares inesperados. Rodovalho nunca precisou de grandes efeitos, sua visualidade é centrada no corpo e suas capacidades, e ai está sua excelência.

O heróico aqui se limita ao fazer a obra acontecer. Com a companhia desmontada, sem elenco nem equipe trabalhando continuamente, monta-se um time, no qual a grande força é a empatia, a vontade, o amor pelo trabalho. Não é surpresa que vemos tantos nomes voltando para essa ocasião. A Quasar merece. São 30 anos de pesquisa que fazem parte da assinatura da dança brasileira — uma das assinaturas de movimento mais reconhecíveis e mais imitadas, importante frisar.

 

Se a saudade é tema recorrente da Bossa, ela também se recupera nesse momento todo, de trazer a Quasar de volta. Se a obra, pelos efeitos de seus processos, ainda tem a cara de inacabada, de incompleta, isso não é estritamente um demérito: a Quasar também está incompleta e inacabada — ela tem muito a nos mostrar, muito a nos dizer. As cenas reaproveitadas de obras passadas servem para nos mostrar o quanto de seu repertório é ainda relevante, e merece ser dançado, e precisa ser visto. Os toques de novidade, sobretudo nas estruturas de grupo, que vimos também em outra criação de Rodovalho desse ano (“Melhor Único Dia”, para a São Paulo Companhia de Dança), ilustram alguns novos caminhos, novas dinâmicas, as potências de continuidade, e uma permanente jovialidade.

 

A isso, soma-se o desafio do sotaque coreográfico da companhia. Dançar a Quasar é um trabalho de vida, que não se realiza plenamente só nos três meses que teve essa produção. É um projeto que fica no aguardo de mais tempo para poder continuar sua missão. Enquanto a oportunidade dessa parceria serve para trazer a Quasar da memória à presença, os votos são intensos de que esse episódio se transforme em permanência. Afinal, é esse o sentido da preciosidade, não só aquilo que ainda guardamos, mas o que precisamos e queremos guardar.

“Agora” e de novo. Por favor, obrigado – Por Henrique Rochelle – jun 2019

FONTE: https://www.daquartaparede.com/post/spcd-agora

 

Por Henrique Rochelle – em junho/2019

 

“Agora” e de novo. Por favor, obrigado.

Leve e gostosa, a nova coreografia de Cassi Abranches para a São Paulo Companhia de Dança é para ser vista de novo e de novo. Inteligente, bem dançada e bem coreografada, reflete sobre os sentidos do tempo e nos mostra que a hora é agora: para essa obra e essa coreógrafa.

 

Quando começa “Agora”, que Cassi Abranches acaba de criar para a São Paulo Companhia de Dança, é o som das batidas de relógio da trilha sonora de Sebastian Piracés que nos transporta ao universo do tempo e de seus desdobramentos. Escolhido em sua polissemia como tema da obra, o Tempo se reflete em trilha, em coreografia, em corpos, em movimento.


A obra é dividida em três pedaços, ainda que inteligentemente mantendo a progressão contínua e inevitável do tempo que passa. No primeiro deles, um depoimento indireto de memória — para trabalhar ainda um outro sentido de tempo — à tradição de criação coreográfica da qual Abranches faz parte. Com 12 anos no elenco do Grupo Corpo, inevitável que algo da estrutura coreográfica de Rodrigo Pederneiras lhe fosse transmitido. Mas sua coreografia, ainda que da linhagem de Pederneiras, não é nem tenta ser Pederneiras. Ela tem novas formas de olhar o corpo e o movimento — formas que têm tudo a ver com a prática construída dançando.

Sem tentar fugir ou negar essa história, a coreógrafa sabe mostrar de onde veio e onde está: seu foco, assim como o dessa coreografia, é o agora. Quando ela trabalha, no primeiro dos momentos da obra, as construções entre o conjunto, os indivíduos, e as muitas possibilidades entre uma ponta e outra dessa divisão, ela nos revela a surpresa mais agradável de seu arsenal: saber coreografar grupos.


A observação parece boba, mas o fato é que há muito tempo sentimos falta de coreógrafos que construam para grupos, e não apenas para agrupamentos de solos simultâneos. Na coreografia de Abranches, há espaço para formar o conjunto, desmembrá-lo e reconfigurá-lo em combinações inúmeras, reagrupar, e mostrar o valor daquilo que mais me seduz em coreógrafos: a cabeça que parece operar em um nível completamente distinto do padrão, como se criassem e resolvessem constantemente quebra-cabeças de espaço e de corpos.

Tudo é uma questão de encaixes, e eles são demonstrados nas formas de articular os bailarinos em cena, e, insistentemente, em gestos e passos que ficam marcando algumas passagens. Dentre eles, o melhor é a sequência (para nossa sorte) repetida algumas vezes, de um salto feminino explosivo, que coloca as bailarinas na horizontal, quando encontram e se encaixam nos braços seus parceiros. Em uma das aparições desse salto, é a sequência de coreografia a partir dos braços presos pelos cotovelos que dá a Michelle Molina e André Grippi a oportunidade de nos mostrar o prazer com que eles se entregam e solucionam problemas de movimentação.

 

Uma delícia de ser dançada, uma delícia de ser ouvida, uma delícia de ser assistida.


A satisfação no rosto dos intérpretes insiste em algo que o público também sente: essa obra é uma delícia. É uma delícia de ser dançada, uma delícia de ser ouvida, uma delícia de ser assistida. Tem aquele efeito cada vez mais raro, e insistente no trabalho de Abranches, de dança que não precisa ser pesada para ter conteúdo. Seus trabalhos são agradáveis, são desejáveis, e é isso que faz que sejam tão bem recebidos e tão bem apreciados — na estreia, antes mesmo da obra terminar a plateia já explodia em aplausos. Merecidos.

 

Se o tempo às vezes explode e dispara, por outras vezes ele parece contido e suspenso em meio à memória. Esse aspecto é trabalhado no segundo momento de “Agora”, em que a figura feminina interpretada por Ana Paula Camargo confronta uma lembrança, e depois nos retrata seu momento presente. Aqui a coreografia trabalha a contenção para fazer um tipo de gesto que tem a marca do passado, da lembrança, sobreposta à marca do presente, e parece nos falar também da passagem de Abranches do palco à coreografia.


Bailarina, sim, e com todo o saber de sua prática, mas agora coreógrafa.


Maturidade coreográfica é algo que, logicamente, se constrói em tempo e trabalhos, mas é fato que já passamos do momento de nos referir ao trabalho de Abranches como um de iniciação ou potência e assumirmos sua verdade: isso é coreografia de alta qualidade. Num curioso paralelo com o título da obra, a primeira vez que critiquei uma obra de Abranches, “Gen” (2014), eu a chamava de “bailarina-agora-coreógrafa”. A cena de “Agora” traz um tanto dessa raiz: bailarina, sim, e com todo o saber de sua prática, mas agora coreógrafa. E coreógrafa de coreografia para ser dançada com gosto — um trunfo seu em meio a uma seleta lista de novos-grandes-coreógrafos.


Íntima da obra e de sua proposta, a luz de Gabriel Pederneiras serve, mais uma vez, para organizar os meios como se dá forma ao tempo, tornando-se um elemento a mais da construção. Não se trata de ilustrar, mas de construir poética. A luz persegue o movimento da cena, recorta seu espaço, e inicia e termina com a reflexão perfeita do relógio — também discretamente colocado sobre o palco, com um fraco ponteiro de luz que vai marcando a passagem do tempo.

Entre as corridas de Yoshi Suzuki e a forma quase melancólica de percorrer o espaço de Nielson Souza, vemos a coreografia valorizar aquilo que é a cara da SPCD — seu elenco, seu frescor, sua juventude, sua disposição. Fica como um bônus que a obra, que trata de tempo, é precisa em seu tempo-duração. Nem mais, nem menos do que o necessário. Sem tempo para repetir o trivial, sem enrolar para ocupar espaço, sem precisar se alongar para cumprir um requisito. São 20min entre os mais bem trabalhados que recentemente subiram ao palco.


“Agora” é daquelas obras que precisamos assistir de novo e de novo. E daquelas raras que me levarão ao teatro múltiplas noites na mesma temporada.


Da expectativa e da potência à realização concreta e deliciosa, “Agora” é depoimento positivo tanto da criatura como da criadora. As duas chegam ao palco prontas, com o conhecimento e o peso de uma história e um passado, num presente realizado e cheias de futuro. O lado positivo é que não precisamos ficar num eterno “aguardamos as próximas obras” — que aguardamos de fato, mas não porque esta ainda não seja boa o suficiente, mas sim porque esta nos mostra o tanto que ela já dá conta de fazer.


“Agora” é daquelas obras que precisamos assistir de novo e de novo. E daquelas raras que me levarão ao teatro múltiplas noites na mesma temporada. Porque não dá pra esperar ela ser dançada outra vez, ano que vem: o que existe é o agora.

 

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